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23 de março de 2021
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ACORDA, CULTURA

ARTIGO de MARTA PORTO (*)  

“Morte, vela, sentinela sou, do corpo desse meu irmão que já se vai. Revejo nessa hora tudo que ocorreu. Memória não morrerá…” (Fernando Brant e Milton Nascimento, Sentinela)

“Uma obra de arte eficaz deixa em seu rastro o silêncio” (Susan Sontag, A Estética do Silêncio)

Escrevo hoje, 22 de março de 2021, sob o luto de 294.042 brasileiros e brasileiras mortos por covid-19 em um contexto que assemelha o Brasil a um campo de extermínio. Com exceções notáveis, muitos de nós apenas dão de ombros e rezam para não estarem nas próximas estatísticas. E esse dar de ombros fala muito sobre a cultura que o gerou e os escombros em que vivemos.

A naturalização da morte violenta e da brutalidade é uma marca cultural do Brasil. Se antes, uma média de 66 mil corpos tombavam por ano, em sua maioria jovens e pretos, por ações violentas do Estado ou pelas guerras inacabáveis que as nossas periferias e favelas são submetidas, hoje morremos por um vírus letal que se encontrou com a negligência e a incúria das instituições de Estado e a perversidade de um governo liderado por quem celebra publicamente a tortura.

Marta-PortoRomper com essa brutalidade, com o ressentimento, a naturalização da morte violenta, com esse niilismo social, é a principal tarefa da cultura para as próximas décadas se, de fato, quisermos construir uma base civilizatória diferente da que a nossa história nos impôs. Para além de aceitar e advogar pela nossa diversidade, sempre tão celebrada, temos que orientar nosso trabalho para defender uma epifania de consciência, de alteridade e corresponsabilidade com e pelo nosso povo, em especial os mais vulneráveis, as crianças e os jovens. Estar imbuídos da tarefa de cooperar, através do ecossistema cultural – artistas, produtores, gestores, instituições, espaços, recursos, infraestrutura, conexões – com um tipo de desenvolvimento onde pessoas de carne e osso estejam no centro, e nosso potencial ambiental saia do discurso e ganhe concretude em políticas, programas e no corpo institucional. Fazer isso implica um enorme esforço de consciência cívica, de amor ao país e à nossa gente. E de reorientação dos postulados que sustentam políticas, programas e iniciativas culturais as mais diversas. Não serão iniciativas isoladas, e elas existem, e muitas são um exemplo de civismo e coragem que irão mudar o rumo da prosa. E esse rumo já passou da hora de mudar.

Desde a implantação do Ministério da Cultura, em 1985, o debate cultural se amesquinhou. Passou a ser a soma de interesses corporativos, de classe, de grupos e de pessoas, e nunca do povo, do público, do projeto de país. Há muito paramos de discutir cultura para falar apenas de produção cultural. E de forma rasa, como se o mundo tivesse parado no tempo e o país estivesse disposto, com seus imensos desafios, a sustentar a eterna discussão sobre incentivos fiscais a projetos de alguns produtores e organizações com maior apelo na mídia e junto a patrocinadores. Não, o país cansou dessa epopeia anti-heroica que obscurece a importância, inclusive, da produção cultural para o país e a torna cada vez mais lateral na defesa das agendas prioritárias do povo brasileiro.

Em muitos dos casos, a mediocridade reinante assume ares de pompa, em especial quando o assunto é a mais recente bola da vez, a economia criativa. Estudos, pesquisas, indicadores são criados para mostrar “o impacto da cultura na economia”, “o potencial das artes para o desenvolvimento econômico”, sem que se consiga mostrar como os segmentos implicados no escopo ‘criativo’ cooperam para enfrentar os principais dilemas históricos do Brasil: desigualdade, concentração de renda, ausência de oportunidades para nossos jovens, e de mobilidade social para as famílias. Não que esse tema não seja relevante, mas fico com a pergunta: basta a economia ser criativa para reorientar um modelo de desenvolvimento desigual e concentrador? Estudos sobre a indústria do carnaval no Brasil mostram que essa pergunta continua silenciada e que ainda precisamos avançar muito nos parâmetros que geram essas medições[1]. O impacto para a economia das cidades é uma realidade incontestável, mas isso raramente se converte em melhores condições socioeconômicas para as comunidades que criam e produzem a festa. Empregos são gerados, mas são sazonais e não se configuram uma verdadeira mobilidade social para os trabalhadores do carnaval, a maior e mais rentável festa brasileira. São desprezíveis? Não, mas insuficientes.

Não é preciso antes mudar as crenças culturais que nos levaram a esse modelo? E o que pode nos ajudar a sair da estagnação do pensamento e enxergar novas saídas? As respostas não são rápidas e fáceis, os tempos em que vivemos exigem que os clichês sejam deixados de lado e as construções sejam de fato transdisciplinares, mas acredito que as nossas ancestralidades, a história cultural invisibilizada pela história e as crenças oficiais, têm muito a nos ensinar. As cosmogonias indígenas e africanas, os saberes e fazeres da cultura popular, as gambiarras organizadas no cotidiano que são artefatos de inventividade e sobrevivência. Tudo que ainda produzimos em abundância, mas não valorizamos e nem orientamos como forma de construção do presente para ter futuro. A cultura, seja no campo dos valores e das crenças, seja para a inovação socioeconômica e produtiva – os saberes da floresta, o manejo sustentável, as gambiarras do dia a dia – é um manancial original, singular, generoso e permanente de construção de presentes/futuros capaz de converter ideias soltas em projeto de país. Um projeto capaz de olhar para a nossa gente, ampliar percepções e visões de mundo no encontro com o outro e também de projetar inovações para um mundo onde as ‘ruínas tecnológicas’[2] são um desafio humano e produtivo. Nos cabe perguntar a partir dessa ideia:   onde está afinal a inovação no Brasil?

No campo da cultura política, da transformação gradual das crenças que sustentam as decisões que nos empurram para o eterno subdesenvolvimento, as artes, as instituições e a comunicação cultural podem contribuir com conteúdos, linguagens e iniciativas que ajudem a elaborar, com as novas gerações, uma sensibilidade que rejeite a brutalidade e a normalização da violência.  E que mobilize afetos para abrir o terceiro olho dos brasileiros para ver e ouvir o Brasil e as invenções diárias do nosso povo, com poder de “convocar a aldeia”, como nos ensina o educador Tião Rocha, para um projeto humanista de país que se converta em oportunidades reais, renda, trabalho e dignidade social para a maioria, e não só para os mesmos. Um amplo campo inexplorado de inovação produtiva, de formação e educação profissional em áreas onde o país tem força de convocação e saberes ancestrais – ambiente, saúde e cultura – e que, combinado com as inovações digitais que o mundo demanda, podem se converter em uma revolução no mundo do trabalho. Um mundo que tenha na simbologia feminina de Gaia sua bússola ética. Gaia está enfurecida e exige respeito, sabedoria e amor pela abundância que oferece para a humanidade. O Brasil é o paraíso natural de Gaia, com suas florestas, rios, bacias e lagos, mares e terras férteis, e a biodiversidade que reúne em seus biomas. E na resiliência, inteligência e cultura de nossa gente. Temos que crer, apostar e orientar nosso trabalho para cooperar com essa abundância inata e torná-la riqueza e horizonte para as novas gerações de brasileiros. Não há outro projeto cultural além desse: a partir dos escombros da brutalidade, dizer basta e regenerar a terra garantindo que o Brasil  seja um lugar de justiça e amor.

[1] https://portal.fgv.br/artigos/importancia-carnaval-economia-rio-janeiro

[2] Termo cunhado pelo teórico das mídias Alexander Galloway

(*) Marta Porto .

Crítica da Cultura, jornalista, escritora. Tem participado das principais arenas internacionais de debates sobre artes, cultura e políticas culturais nos últimos 30 anos. É autora, dentre outros, dos livros: “Imaginação, Reinventando a Cultura” (Editora Jandaíra, 2019) e “Nós do Morro, 20 Anos” (XBrasil, 2008).



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